Foi-se o tempo em que o domínio de certos saberes era de uso exclusivo daqueles que ingressavam em universidade deixando a grande população à mercê das migalhas daqueles que têm acesso a esse saber especializado e aos possíveis efeitos da aplicação de teorias e conhecimentos. Graças aos pensadores mais ligados ao pensamento marxista, uma boa parte da população pode ter acesso ao conhecimento, pois como prenunciava Marx: tinha chegado o momento de a filosofia descer do mundo das ideias para transformar o mundo real.
Com o avanço da internet, uma enxurrada de informação nos é acessível a um toque na tela do celular, dificilmente alguém hoje em dia acha que o fato de não ter acesso é algo ruim, só que vemos, na contramão uma enxurrada de fake News. Há também um crescente descrédito de ideias que, amplamente discutida em universidades do mundo, caem na boca do povo como se fossem vereditos em um tribunal popular, basta pensar nas pessoas que são a favor ou contra o comunismo, mesmo sem nunca ter lido uma página do que Marx deixou escrito, sem falar das pessoas que são a favor da AI-5 sem ter o menor conhecimento do que isso significou para a nossa história e para aqueles que perderam sua vida em um momento tão cruel da nossa história.
Ficamos em uma encruzilhada: abrir informação para toda a população e deixar que eles decidam como num eterno Corinthians X Palmeiras se tal ideia é melhor ou ficar no mundo das ideias de uma universidade fechada para os seletos. Há solução? Há, mas é um trabalho hercúleo para um país que mal saiu de uma ditadura e já está flertando com outra. Temos pessoas que fazem parte de uma elite, que compram ideias ditatoriais, que flertam com ideias autoritárias pensando que elas são as únicas possíveis para um país em que uma boa maioria não têm nem acesso ao básico em todos os sentidos, e isso a pandemia da Covid-19 escancarou, só não vê quem não quer, eu que sou professor estou ouvindo todos os dias depoimentos de pais e alunos desesperados para fazer atividades que somos obrigados a postar, mas eles não têm acesso para fazê-las, há alunos que compram créditos de celular para fazer atividades. Será que o que falta é mais ditadura, calar a boca de tais pessoas ou ouvi-las, saber o que pensam para que elas possam ter mais e melhores oportunidades?
O que me espanta não é nem tanto essa elite que flerta com ideias autoritárias, são pessoas das classes mais baixas achando que essas são medidas necessárias, sendo que elas mesmas serão atingidas por tais medidas, pois como ficou claro nas palavras do ministro da Economia, que se investir nas pequenas empresas eles só têm a perder. Como assim eles? O país somos todos nós, inclusive os pequenos empreendedores que são os maiores empregadores do país.
Mas o que eu quero dizer é que temos que ter muito cuidado em aderir a ideias sem a devida criticidade, pois intenções escusas podem estar por trás, principalmente vindo de uma classe social completamente diferente da nossa. Aqui eu chamo a atenção para um livro de Ortega y Gasset chamado Rebelião das Massas, quando discute essa facilidade que as grandes massas hoje têm acesso a todo tipo de ideias antes pertencente a um tipo selecionado. Não entrarei nos méritos e deméritos do livro, pois ficaria muito tempo falando, mas o que quero falar é que palavras que antes faziam parte de uma elite na boca de quem não fazia parte dela pode dar a impressão de que você faz parte de tal elite também. Explico-me: soa para a pessoa, como se fosse de uma classe social mais alta criticar o socialismo mesmo sem saber o que ele significa, pode-se estar reproduzindo uma ideia vinda de alguém que, por algum motivo, tem muitos interesses de que decisões do povo não sejam prioridade e perpetuem os ideais que já vêm de há muito tempo. E antes que venham dizer: ah, esse é do PT etc., favor ler melhor o que estou falando.
Outro livro que li essa semana foi Ódio à Democracia de Jacques Racière, quando o filósofo chama atenção para a grande dificuldade, através dos tempos de se criar uma sociedade realmente democrática, o que para ele, de fato, nunca existiu, o que houve foi oligarquia. Concordo, e concordo também que a incorporação da linguagem da elite pelas classes mais baixas ajuda a manter essa oligarquia no poder, já que ela detém os meios de comunicação de massa, por isso fica mais fácil imputar tais ideias na massa. Quando um governo ascende ao poder, é normal se dizer democrático, mas, no fundo, sabe que lidar com o anseio de todos, é algo impossível, isso vemos nas falas do nosso presidente (não só no dele): “no meu governo é assim”. Beira à contradição, já que se fosse uma democracia, não seria o seu governo, seria do povo, e não só de quem votou, nele, mas no de todos.
Claro que alguém em sã consciência, ainda acha que viver em democracia é a melhor forma de viver em sociedade, mesmo que, como diz Racère, não esteja claro que tipo de instituições estejam no cerne de uma sociedade democrática, e, claro, ainda temos muito que avançar apesar de todos os problemas que estamos vivendo atualmente com a crescente onda de ódio contra as minorias.
Creio que choca se dizer democrático e ver o diferente crescer, principalmente quem pode ganhar um poder até então inimaginável, basta ver hoje os poderes que mulheres, gays, negros, dentre outros grupos detêm na sociedade., e com uma sociedade democrática, a tendência é dar espaço e voz para cada vez mais grupos diversos, aumentando assim a diversidade, chocando os mais conservadores, é lógico que os outros grupos mais à margem vão se fazer visíveis em um mundo em que as diferenças são expostas em todos os meios de comunicação, talvez por isso esse desespero da elite pela volta da ditadura, mas como eu disse anteriormente, o que me preocupa não é nem tanto isso, é essa apropriação do resto da população de termos que agora eles têm acesso, principalmente aqueles termos que estão longe de fazer parte de uma realidade própria a eles, se bem que uma ditadura não é, de forma alguma, digna da realidade de ninguém, a não ser daqueles que se esmeram na barbárie. Eu ainda prefiro que eles se apropriem de tais termos e, nós, professores, façamos cada vez mais nosso papel de educadores, de dialogadores, mesmo que seja algo extremamente difícil no momento em que estamos vivendo, já que os esbravejadores gritam tão alto. Uma pergunta vai ficar: seremos mesmos democráticos? Existe limite para a diversidade humana? Como garantir direitos para todos os tipos de diversidades que podem pulular de uma vida realmente democrática? Não sei dizer, mas sei que podemos aprender a ser pessoas melhores com diversidade de vida.
Ananias Oliveira, professor, filosofo e escritor