O país precisa saber desta terrível matança que está ocorrendo com o desvio dos recursos da União repassados aos Estados, municípios e ONGs: é quase um trilhão de reais nos últimos anos. A corrupção do Lava-Jato se transforma em fichinha face a este terrível atentado contra a população mais pobre. Não podemos ser enganados e mentidos pela mídia e outros meios de comunicação que somente focam a corrupção das empreiteiras do Lava Jato, ocultando a outra corrupção maior e mais perversa porque condena à morte por mingua milhares e milhares de pessoas. Ou o Brasil se reforma de cima abaixo ou seremos condenados a virar lentamente uma África, pela irresponsabilidade de nossos políticos que dão infinitamente mais valor à acumulação privada ou corporativa de riqueza do que ao cuidado com quem mais precisa, em geral, ao povo brasileiro. Este sofreu a colonização, a escravidão e agora a sistemática depredação dos meios de vida por parte de uma oligarquia egoista ao extremo, inumana e cruel. Como está, o Brasil não pode continuar. A atual crise é oportunidade de uma mudança, desde que seja radical. Lboff
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‘É assassinato da esperança’, diz executivo da Controladoria sobre desvios da merenda
Wagner Rosário, secretário do Ministério da Transparência, Fiscalização e CGU, estima que esquemas de fraudes e desvios de recursos públicos que atingem pequenos municípios com baixo IDH podem superar ‘um milhão de vezes’ o rombo na Petrobrás descoberto na Lava Jato
Julia Affonso
25 Dezembro 2016 | 06h3
Wagner Rosario. Foto: Adalberto Carvalho/CGU
Todos os recursos repassados pela União para Estados, municípios e Organizações Não-Governamentais são fiscalizados pelo Ministério da Transparência, Fiscalização e Controladoria-Geral da União. Cerca de 1400 auditores monitoram, no País, desvios de verba, fraude a licitação, falsificação de documentos e tudo mais que encontrarem de irregular pelo caminho. E não acham tudo.
Em 13 anos, a CGU deflagrou, em parceria com a Polícia Federal e o Ministério Público Federal, 247 ações de investigação de verbas federais. O prejuízo mínimo é estimado em R$ 4 bilhões. A pasta identificou que 67% das fraudes ocorreram nas áreas da saúde e da educação de municípios carentes, que detêm reduzido Índice de Desenvolvimento Humano.
“As consequências são muito mais altas do que bilhões de desvios em obras. Não são só R$ 4 bilhões. Um estudo econométrico da consequência disso para um País chega na casa de trilhão. São R$ 4 bilhões camuflados, pode transformar isso em uma quantidade um milhão de vezes maior do que os prejuízos que a Petrobrás apresenta”, alerta o secretário-executivo da Transparência, Wagner de Campos Rosário, em referência à Operação Lava Jato, que abriu a caixa preta do grande esquema de propinas instalado na estatal petrolífera entre 2004 e 2014.
Além das fraudes milionárias, a CGU achou obras paralisadas e abandonadas, má conservação de equipamentos, armazenagem inadequada de medicamentos e falta de infraestrutura nas escolas.
“Quando você retira merenda de uma criança, você tira a possibilidade de crescimento daquele município a médio e longo prazo. É uma geração inteira que você está matando”, adverte Rosário, há 8 anos na Controladoria-Geral da União.
VEJA A ÍNTEGRA DA ENTREVISTA
ESTADÃO: Quanto perde um País que tem 67% de R$ 4 bilhões desviados da Saúde e da Educação?
WAGNER DE CAMPOS ROSÁRIO, SECRETÁRIO-EXECUTIVO DO MINISTÉRIO DA TRANSPARÊNCIA: Condena o País a uma situação que nós vivemos hoje. Uma desigualdade social muito grande, pessoas sem condições mínimas de dignidade humana. Enquanto a gente não tiver um desenvolvimento dessas crianças, em um nível intelectual aceitável, a gente não vai ter reflexo no crescimento e desenvolvimento do País. Os países que saíram de uma situação semelhante à nossa e trilharam um caminho de desenvolvimento e melhoria de qualidade de vida da população tiveram essas mudanças em momentos críticos. Em alguns foi uma guerra, uma crise, cada um tem a sua história. Eu acho que esse momento crítico a gente está vivendo no País. Hoje é um momento de inflexão para que as pessoas parem para observar que a atuação de cada cidadão é importante. Os órgãos de defesa do Estado são essenciais. Mas enquanto a população não verificar que benefícios particulares não podem estar acima dos benefícios coletivos, não se sentir parte de uma sociedade, não vai ter uma vitória. A gente hoje está submetida ao ciclo vicioso da corrupção. Altos níveis de desigualdade social, pessoas que não acreditam nos seus representantes, isso gera um problema que as pessoas não acreditam que é possível mudar. A gente pode mudar como cidadão, acabar com a cultura do ‘jeitinho’. Enquanto a população não mudar, o País não vai andar. Isso é mais importante que as leis. Não adianta exigir que as pessoas que nos representam mudem, porque elas vão ter exatamente o comportamento que nós temos.
ESTADÃO: Os esquemas têm mais facilidade de se infiltrar em cidades mais pobres?
WAGNER ROSÁRIO: Acredito que sim. Em uma população com menor nível de educação, o controle social vai ser menor. A pessoa não tem muita noção se aquele gasto pode ou não pode. Torna-se mais fácil desviar recursos ali. Para pessoas que foram submetidas a um Estado de extrema pobreza por muito tempo, um saco de arroz é muito. Pessoas que já têm acesso a coisas básicas, talvez aquele pouco que você dê seja muito pouco, ela não vai aceitar. O nível de cobrança aumenta. A melhoria da educação, da qualidade de vida, de uma série de coisas, é essencial. Municípios que já chegaram a um nível maior de educação não toleram níveis de corrupção maiores. É muito mais fácil você agradar uma pessoa que não tem nada, nem o que comer, do que uma pessoa que tem condições básicas, com tudo. Na área de saúde, por exemplo, quando a gente pega os números de desvios, a maioria das fraudes é em saneamento básico, saúde da família e atenção básica à saúde. Saneamento básico é básico. Isso vai influenciar a expectativa de vida das pessoas, onde não tem saneamento as pessoas vivem menos. É uma coisa puxando a outra. Nos municípios mais pobres é mais fácil se manter a corrupção.
ESTADÃO: Muitas vezes as investigações da CGU pegam desvios de R$ 50 mil, R$ 100 mil em prefeituras. Qual o impacto da perda desses valores para os municípios?
WAGNER ROSÁRIO: A gente tem alguns critérios que pautam nosso trabalho e são conhecidos por todos os auditores: criticidade, materialidade e relevância. A gente sempre olha se aquele recurso realmente tem valor. Se eu tenho que fiscalizar R$ 10 bilhões ou R$ 100 mil, eu vou em R$ 10 bilhões. Mas tem recursos que a criticidade me faz olhar para eles. Por exemplo, merenda escolar. Os valores para municípios são pequenos, só que eles impactam muito forte no futuro do município. Eu tenho que fiscalizar, como não fiscalizar isso? A gente chama isso de assassinato da esperança. Quando você retira merenda de uma criança, você tira a possibilidade de crescimento daquele município a médio e a longo prazo. É uma geração inteira que você está matando. A gente tem trabalhos que não são de investigação, mas geram benefícios financeiros muito maiores. Muitas vezes a gente é obrigado a abrir um pouco mão do critério de materialidade e atuar em criticidade. É um dilema que a gente vive aqui. Vamos pautar pela materialidade, pela criticidade ou pela relevância daquele tipo de gasto? Muitas das vezes a gente tem valores baixos nesses trabalhos. Eu não posso largar isso de lado, porque é o futuro daquele município e do País. Você tem que fazer aquilo chegar lá, essa é a luta.
ESTADÃO: São 247 operações de investigação e um prejuízo mínimo estimado em R$ 4 bilhões. A que valor pode-se chegar?
WAGNER ROSÁRIO: É um prejuízo mínimo, é o que a gente levantou durante as investigações. A gente foca muito nos prejuízos identificados financeiros. Os não-financeiros são muito maiores. Se fôssemos fazer um estudo econométrico das consequências, por exemplo, que você gera a um município que desvia dinheiro da merenda escolar, em que as crianças não têm o desenvolvimento básico cognitivo, qual é o custo disso para um município no futuro? Isso não está quantificado e é muito difícil quantificar. Nós temos alguns índices que mostram isso. Quando a gente pega esses Índices de Desenvolvimento Humano ou Ideb, você verifica que, normalmente, esses locais apresentam baixos níveis básicos de expectativa de vida, expectativa de estudo, de anos médio em escola. Na Operação Mascotch (em Alagoas), a gente fez entrevistas com professores que disseram que a alimentação ali era dia sim, dia não. Só aí são 50% de recursos desviados (da merenda). Quando era sim, normalmente serviam só parte. Você imagina uma criança que já é pobre, que não tem estímulo ao estudo e com fome. Qual é a probabilidade dessa criança ter um rendimento adequado na escola? Você matou uma geração. É uma fraude que às vezes não é alta, mas as consequências são muito mais altas do que bilhões de desvios em obras. Não são só R$ 4 bilhões. Um estudo econométrico da consequência disso para um País chega na casa de trilhão. São R$ 4 bilhões camuflados, pode transformar isso em uma quantidade um milhão de vezes maior do que os prejuízos que a Petrobrás apresenta.
ESTADÃO: A corrupção que tira a merenda e o transporte escolar afeta o desenvolvimento do município e dos habitantes?
WAGNER DE CAMPOS ROSÁRIO: Não há dúvida. Essa é uma das consequências da corrupção, retirar a possibilidade de desenvolvimento, de crescimento. Mantém a pobreza, gera uma descrença da população nos seus representantes, colocando em risco até o Estado Democrático. As pessoas têm de ter confiança nos seus governantes. Você tem uma desconfiança generalizada, isso tudo afeta o crescimento e gera a manutenção da pobreza naqueles municípios.
ESTADÃO: Nessas operações, mais de 700 cidades foram afetadas, a maioria no Nordeste. Por quê?
WAGNER ROSÁRIO: Cerca de 46% das operações estão no Nordeste, 23% na Região Norte. Nós temos algumas informações que talvez nos ajudem a entender o porquê. Muitas dessas operações aconteceram em recursos da Educação e Saúde. O Fundeb é um recurso a princípio vinculado a Estado e município. Quando a União complementa o dinheiro, nós fiscalizamos. Praticamente nós não fiscalizamos o Fundeb quando não existe complementação da União. Distrito Federal e Espírito Santo não têm complementação da União. Quando você vai analisar quem recebe, Alagoas, Amazonas, Bahia, Ceará, Maranhão, Pará, Paraíba, Pernambuco, Piauí e Rio Grande do Norte, a maioria está no Nordeste e dois Estados do Norte. A gente verifica que chegam mais recursos da União nesses locais e, com isso, a gente fiscaliza mais. Talvez se tivesse mais recursos do Fundeb em outros Estados, a gente teria verificado mais problemas nos outros Estados. Essa é uma das explicações. A outra é que quando você vem para a Região Sul e Sudeste, além dos municípios, você tem muita aplicação de recursos em estatais, tem muitos órgãos públicos. Nós fiscalizamos isso. Nós não temos tempo e equipe para verificar a execução do gasto público municipal dos recursos federais. A gente fiscaliza mais isso no Nordeste. Praticamente não tem órgão público, poucas estatais, quando tem alguma coisa é Universidade. Essas são duas variáveis, portanto, que devem ser levadas em consideração.
ESTADÃO: Os dados apontam uma recorrência de fraudes semelhantes nos mesmos municípios por anos. O que fazer?
WAGNER ROSÁRIO: Essa é uma pergunta que vale muito. Os órgãos de controle têm se especializado nesse tipo de fraude, talvez torne mais fácil identificar. Em alguns Estados a gente verifica que a fraude em merenda escolar parece recorrente. Merenda escolar facilita muito a fraude, por ser um tipo de gasto de consumo, é perecível. Se eu te perguntar o que você comeu na semana passada, talvez você não se lembre mais. É difícil você provar. Se a pessoa alega que deu a merenda, você vai pegar como prova uma criança de 8 anos? Isso é uma das coisas que talvez leve as pessoas a fraudar esse tipo de gasto. Transporte escolar a mesma coisa. A dificuldade de quem chega de fora é como verificar se aquelas crianças realmente moram naqueles pontos que estão dizendo. Ou se aquele transporte realmente é feito naquelas condições. É um tipo de trabalho que a gente tem de ir até a ponta e tentar identificar ao máximo. É um trabalho bem meticuloso, chegando de surpresa muitas das vezes para poder pegar os problemas.
ESTADÃO: Como avalia a capacidade de gestão dos recursos pelos municípios? Algumas cidades não chegam a usar o montante total da verba destinada pela União.
WAGNER ROSÁRIO: É comum isso, e a gente tem trabalho de fomentos à gestão. Não adianta ter um trabalho de controle federal forte e um controle estadual e municipal fraco. Como também não adianta ter um controle forte com gestões fracas. Os órgãos de controle estão se juntando, se unindo para tentar fomentar a parte de governança, fazer com que os gestores pensem no futuro. Isso é difícil, ainda está no início. Nós temos problemas graves de gestão, pessoas que não têm conhecimento da legislação para gestão dos recursos e ocasiona isso. Muitas vezes não é a corrupção, mas é a péssima gestão aliada ao fato de que a pessoa não consegue gastar aquela verba.
ESTADÃO: Uma gestão que não sabe administrar os recursos também atrapalha o crescimento do município?
WAGNER ROSÁRIO: Totalmente. Esses gestores são escolhidos pela população através do voto. É importantíssimo a população prestar atenção nisso. Gerir recursos, principalmente públicos, é difícil. A gente precisa ter pessoas preparadas. Esse é um desafio a ser vencido.
ESTADÃO: As operações identificaram esquemas que atuam simultaneamente em 35 cidades, às vezes 50. Há relação com a geografia dos Estados, o fato de os municípios serem muito próximos?
WAGNER ROSÁRIO: Já tivemos casos que foram em seis Estados diferentes, como na Operação Saúde. Fornecimento de medicamentos com duas fornecedoras na mesma cidade no Rio Grande do Sul. Um esquema de corrupção e pagamento de propina para poder vender remédio naqueles locais, entregar remédios vencidos. Fizemos uma operação nacional. Os municípios idem. Às vezes, em uma região, você tem uma determinada empresa que vence todas as licitações de alimentação escolar, remédio ou obras naquela região. Você começa a investigação e vê que o esquema está distribuído pelos municípios da região. A gente não vai a todos, porque você ficaria 10 anos investigando. A gente tenta matar o esquema. Seleciona quatro ou cinco municípios, realiza o trabalho, confirma as fraudes, deflagra com a Polícia e o Ministério Público. Por mais que outros municípios não estejam envolvidos naquela deflagração eles estariam se nós tivéssemos mais tempo para investigar. Nós não temos perna para mandar auditores para 50 municípios. O mais urgente é estancar aquela sangria e tentar tocar a investigação já com aquele esquema de fraude de recursos pelo menos interrompido. Quando você vai ver é um único esquema com o mesmo grupo empresarial atuando nos vários municípios. Aquilo ali é só uma amostra, teria muito mais municípios. As cidades que não estão na operação vão ser beneficiadas, porque aquele esquema vai ser quebrado.
ESTADÃO: Ao longo dos anos, as operações têm sido deflagradas com cada vez mais parcerias entre os órgãos. Qual a importância disso?
WAGNER ROSÁRIO: A corrupção é totalmente ligada à criminalidade organizada. Você tem divisão de funções, de tarefas. Pessoas que executam a corrupção, que vão lavar o dinheiro. Há um grupo organizado. O Estado é dividido por órgãos, cada um com uma atribuição. O Ministério da Transparência consegue entrar na aplicação do recurso público e identificar a fraude. A Polícia Federal tem uma expertise muito grande na parte de investigação criminal. O Ministério Público entra com essa ação e também realiza investigação. A Receita Federal sabe da parte tributária. Nenhum órgão é capaz de saber tudo. A gente tem que trabalhar em conjunto, isso gera aproveitamento. Quando você junta essas pessoas em torno de uma mesa e planeja conjuntamente, os trabalhos têm outro nível.
Leonardo Boff é articulista do JB on line e escritor.